sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Glenn Gould (1932-1982) - O Escritor (Parte IV)

Esta é a quarta parte de um artigo que Glenn Gould escreveu para a revista High Fidelity em 1974. A entrevista que traduzo aqui a partir da versão original que podem encontrar aqui é do próprio Gould que desempenha o papel de entrevistado e entrevistador. A entrevista claro é também sobre o próprio Gould.

As três primeiras partes deste artigo estão aqui (primeira parte), aqui (segunda parte) e aqui (terceira parte).

Glenn Gould entrevista Glenn Gould sobre Glenn Gould
High Fidelity, Fevereiro 1974.
(Quarta Parte)


g.g.: E tem noção que está a definir e a defender um tipo de censura que contradiz toda a tradição pós-renascentista do pensamento Ocidental ?

G.G.: Claro. É a tradição pós-renascentista que está a levar o mundo Ocidental à beira da destruição. Sabe este gosto particularmente esquisito da liberdade de movimento, liberdade de expressão e por aí adiante é um fenómeno puramente Ocidental. Faz parte da noção Ocidental que é possível separar a palavra e a acção.

g.g. : O sindroma paus-e-pedras ?

G.G.: Precisamente. Existem provas que - a propósito McLuhan fala disto na Galáxia Guttenberg - que povos pré-literados ou minimamente literados estão muito menos dispostos a fazer essa distinção.

g.g.: Suponho que também existe a noção bíblica que desejar o mal é realizar o mal.

G.G.: Exactamente. Apenas as culturas que, por acidente ou boa gestão, ultrapassaram a Renascença é que vêm na arte a ameaça que ela verdadeiramente representa.

g.g.: Posso assumir que a União das Républicas Socialistas Soviéticas está dentro desses critérios?

Não esquecer que este artigo é de 1974 e que estávamos nesta altura em plena Guerra Fria.

G.G.: Absolutamente. Os Soviéticos são um pouco rudes no que diz respeito ao método, admito-o, mas as suas preocupações são absolutamente justificadas.

g.g.: E então as suas próprias preocupações? Será que alguma das suas actividades violou essas restrições e nos seus próprios termos "ameçou" a sociedade ?

G.G.: Sim.

g.g.: Quer falar sobre isso ?

G.G.: Não especialmente.

g.g. : Nem mesmo por um instante? Por exemplo o que diz de ter fornecido música para o Slaughterhouse Five ?

Filme de ficção cientifica de 1972. Glenn Gould tocou para esse filme várias peças de Bach (Variações Goldberg nº 18 e 25 -- BWV 988, Concerto de Brandenburg nº 4 - 3º andamento BWV 1049, Concerto No 3 para cravo 1º andamento BWV 1054 , Concerto nº 5 para Cravo 5º andamento BWV 1056)

G.G.: E então?

g.g.: Bem pelo menos pelos standards soviéticos o filme de Mr. Vonnegut's é provavelmente uma peça socialmente destrutiva, não acha?

G.G.: Tenho receio que tenha razão. Lembro-me mesmo de uma jovem senhora em Leninegrado uma vez me dizer "Dostoyevsky - apesar de ser um grande escritor era infelizmente pessimista".

g.g.: E pessimismo combinado com a valorização do prazer puro é a marca de Slaughterhouse certo?

G.G.: Sim mas eram as propriedades hedonisticas mais do que as pessimistas que me deram muitas noites sem sono.

g.g.: Então não aprovou o filme?

G.G.: Admirei o seu saber-fazer extravagante.

g.g.: Não é a mesma coisa que gostar.

G.G.: Não , não é.

g.g.: posso então assumir que mesmo um idealista tem o seu preço?

G.G.: Prefiro dizer que mesmo um idealista por perceber mal as intenções de um script de cinema.

g.g.: Teria preferido então um Billy Pilgrim sem compromissos ?

Billy Pilgrim é o personagem principal de Slaughterhouse

G.G.: Sim teria preferido algumas características redentoras na sua personagem.

g.g.: Então não concorda com a teoria arte-como-pura-técnica de Stravinsky por exemplo?

G.G.; Claro que não . Essa é provavelmente literalmente a ultima coisa que a arte é.

g.g.: E então quanto à teoria arte-como-arquétipo-de-violência ?

G.G.: Não acredito em arquétipos. São simples brinquedos nas mentes que resistem à capacidade de aperfeiçoamento do homem. Para além disso se está á procura de arquétipos de violença então a engenharia genética por exemplo é uma aposta melhor.

g.g: E quanto à arte-como-experiência-transcendente ?

G.G.: Das três que citou é única que merece que se fale dela.

g.g.: Tem então uma teoria sua?

G.G.: Sim, mas não vai gostar dela.

g.g.: Estou preparado.

G.G.: Bem acho que a arte deveria ter a oportunidade para estar fora de fase. Penso que devemos aceitar que a arte não é inevitavelmente benigna, que a arte é potencialmente destrutiva. Deveríamos analisar as áreas onde tende a fazer menos mal, usá-las como guia e incorporar na arte um componente que lhe permita evitar a sua própria obsolescência.

g.g: Hmm.

G.G.: Porque, sabe, a posição - ou posições - presente da arte, algumas das quais enumerou têm alguma analogia com o movimento "destruam a bomba" de venerada memória.

g.g: Certamente não se opõe a movimentos desse tipo?

G.G.: Não, mas dado que não vi nenhum movimento "abaixo a criança que tira as asas a uma libelinha" também não me posso juntar ao movimento "abaixo a bomba". Está a ver? O mundo Ocidental está cheio de noções de qualificação. A ameaça de uma destruição nuclear enche essa qualificação. A perda de uma libelinha não. Enquanto estes dois fenómenos não forem reconhecidos como um único indivisível enquanto a agressão física e verbal forem apenas vistas como uma faceta da competição enquanto cada decisão não possa ser equacionada para a sua correlação moral, continuarei a ouvir a Filarmónica de Berlim por detrás de uma divisória em vidro.

g.g.: então não espera ver o seu desejo de morte para a arte cumprido durante a sua vida?

G.G.:Não, não poderia viver sem a Quinta Sinfonia de Sibelius.

Fim da Quarta Parte.

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