domingo, 30 de dezembro de 2007

Teresa Stich Randall e Mozart

Que me desculpe o jornal Público mas hoje vou cometer um pequeno delito. Vou reproduzir na integra (porque não me atrevo a tocar no texto) uma das crónicas de JOÃO BÉNARD DA COSTA no Público. Vou fazê-lo agora por uma dupla razão.

Em primeiro lugar porque estamos a falar de Mozart, compositor de sua preferência e em segundo lugar porque esta crónica nos fala de forma sublime de algumas das óperas de Mozart de que iremos falar em seguida e de uma voz Teresa Stich-Randall que é das minhas preferidas. Este texto escrito por ocasião do falecimento da cantora em Julho de 2007 é - na minha modesta opinião - simplesmente fabuloso.

Eu sei que havia prometido para hoje as Bodas de Figaro. Mas garanto que ficam a ganhar com a troca. A única liberdade que me concedi foi colocar no texto - a azul - links para vídeos ou outros elementos relacionados com o texto e que vos proporcionarão uma experiência ainda mais rica, espero que gostem.

Sei também que choro com facilidade mas juro-vos que a primeira vez que li esta crónica, enviada pela minha irmã não me consegui conter ...

A propósito - e como uma espécie de contrapartida ao Público - as restantes crónicas estão disponíveis embora só para assinantes. Só para a felicidade de as poder ler, uma visão sem dúvida diferente do mundo que nos rodeia recomendam-se.

Segue-se o texto integral de JOÃO BÉNARD DA COSTA in Público.

A CASA ENCANTADA
MORREU-ME TERESA STICH-RANDALL


1 – Morreu a mulher da voz mais isangélica do mundo. Isangélica, caso a palavra exista (mas onde é que as palavras existem?) é aquela que aos anjos se assemelha. Mas, se voz de anjo é lugar comum, isangélica, que aprendi com Jean-Victor Hocquard, é tudo menos comum e aproxima por semelhança. Para mim, é palavra inseparável de Teresa Stich-Randall. Da voz de Teresa Stich-Randall.

Morreu a mulher que mais amei no mundo, entre todas aquelas que jamais toquei, que jamais cheirei, com quem jamais falei. Vi-a? Sim, vi-a, como vos vou contar, mas tão longe como longa é a distância entre uma plateia de São Carlos e o palco desse mesmo teatro. Mas ouvi-a mil vezes e dos anjos quase sempre só a voz foi ouvida. Quando se diz "um anjo apareceu-lhe", essa aparição pressupõe a voz e pressupõe a mensagem. Anjo quer dizer mensageiro. Por isso, os anjos – anjos cantores ou anjos tocadores – são feitos de música e a música é a língua deles. O que de mais próximo eu posso conceber como um anjo, em qualquer das hierarquias celestes, é a voz. A voz de Teresa Stich-Randall.

2 – A morte dela, a 26 de Julho de 2007, aos 79 anos, quase não foi noticia entre nós e, se o foi noutros países, não atroou céus e terras, como aconteceu, há quase um ano, com a morte da Schwarzkopf, ou como aconteceu, em tempos idos, com as mortes da Nilsson ou da Callas. Essas foram divas e, mesmo num mundo tão agnóstico como o nosso, deusas não morrem sem rufos de tambor. Mas anjos perpassam e são mais tangentes ao silêncio. Movem-se entre sopros, flautas ou oboés. Teresa Stich-Randall não foi "a voz do século", como se diz que Toscanini profetizou tinha ela 22 anos, depois de a ouvir cantar na rádio a Traviata. Mas, nos anos 50 e 60, suscitou cultos como poucos cantores suscitaram e quem nunca a ouviu em Mozart ou em Strauss, nunca ouviu nem Mozart nem Strauss. Durante quase cinquenta anos da minha vida, foi o meu Anjo da Guarda. Et incarnata est. Incarnata? Sim, que os anjos tem carne e sexo, pois, se os não tivessem, não podiam ter essa voz, de carne e sexo feita, que de outro modo não nos moviam tanto.

3 – Às vezes acontece com as grandes paixões. Não sermos capazes de localizar com exactidão o momento em que começaram. No meu caso com Teresa Stich-Randall, sei o ano – 1958 – mas não sei se tudo começou quando a vi, ou se já tinha começado antes de a ver, ou se só começou depois de vista.

Vou começar com as visões mas não juro estar certo. A 7 de Fevereiro de 1958 (dia dos meus anos) cantou-se pela primeira vez em Lisboa, por incrível que pareça, o Cosi Fan Tutte de Mozart. Se o elenco masculino era superlativo (Dermota, Kunz e Schöffler, os mesmos da histórica gravação de 55, dirigida por Karl Böhm); se Lisa Otto foi uma sensível Despina; eu só tive olhos e ouvidos para aquela que come scoglio immoto resta, essa Fiordiligi que, ainda mais do que a irmã Dorabella, perderá a firmeza rochosa, traindo, tão fundamente, a fidelidade jurada. Per pietà, ben mio, perdona. As dualidades ocultas são sempre as mais temíveis, disse-nos Mozart. Mas nunca ninguém o exprimiu de maneira tão visceral e tão volátil como Teresa Stich-Randall. Desafiou tempestades (ah, como ela dizia tempesta na primeira ária) mas foi de todas e todos a que mais suavemente voou no vento, "fra gli amplessi" do noivo da irmã.

Extracto de Teresa Stich-Randall em 1966 em Cosi Fan Tutte
Anton Dermota em D. Giovanni 1954 Salzburgo
Erich Kunz nas Bodas de Figaro
Schöffler (e também Modl e Dermota na Re-abertura da Ópera de Viena (1955) - Fidélio
Lisa Otto (também em Fidélio)

Foi nesse mesmo ano que li a primeira edição do livrinho de Hocquard sobre Mozart, que cantava Stich-Randall em todas as páginas. E assim cheguei áquele disco da Philips em que ela canta a Grande Missa em Dó Maior, sob a direcção de Rudolf Moralt. É nela que lhe cabe o Et incarnatus est do Credo. Se Saint-Foix tinha razão quando escreveu que essa página é o clímax da arte mozartiana, é preciso ouvir Stich-Randall para o perceber. "Uma pureza fulgurante" disse Hocquard, notando como ela eliminou incrivelmente qualquer efeito vocal. Meu Deus, porque é que esse disco mágico nunca mais foi reeditado? Com o meu vinil já mais que gasto, passei anos a ouvi-la apenas em memória até que, exactamente (os milagres merecem-se) o Jorge Ritto me deu um compacto, feito a partir dessa gravação. Ouvi-o a medo, medo de não ser a mesma coisa, medo de já não achar aos 70 anos o que tinha achado aos vinte e tal. Não havia razão para isso. A incandescência era a mesma, é a mesma, agora que volto a ouvir vezes sem conta algo que se não é milagre não sei como lhe chamar.

Rudolf Moralt conduz a Filarmónica de Viena na Abertura das Bodas de Figaro.

Mozart? Só Mozart? Ainda em 58, aprendi que não, quando o Manuel de Lucena me fez ouvir a Cantata BWV 51 Jauchzet Gott in allen Landen, em que o vento na voz de Stich-Randall é quase o mesmo (ou é mesmo o mesmo) do trompete de Maurice André, na gravação de Ristenpart. E se vos não posso pedir que partilhem comigo da teofania da Grande Missa, corram a comprar o álbum L'art de Teresa Stich-Randall (quatro discos editados em 2005) onde essa cantata também se inclui.

Este conjunto pode ser adquirido online na Amazon (França) ou na FNAC (França) por exemplo.

Depois, foram aqueles verões de Sintra, do tempo das glicínias, e os verões com Sulle sponde del Tebro de Scarlatti, no disco Archiv que mais próximo me está da "madeleine" de Proust. Depois, foram as outras mulheres de Mozart. A Condessa das Bodas (a única Condessa que não se esqueceu que se chamava Rosina) na gravação de Rosbaud; a Donna Anna do D. Giovanni, que tanto estremeceu a contar ao noivo como o dissoluto esteve quase a roubar-lhe a honra, e não sabemos se mais estremeceu de vergonha, se mais estremeceu de desejo.

Depois, foi esse recital de 56 em Aix-en-Provence, acompanhada ao piano por Rosbaud, em que cantou Mozart, Schubert, Brahms, Strauss e Debussy. Foram os anos dela de Aix, que duraram de 53 a 71, e onde ganhou a maioria dos seus fanáticos, esses que, como eu, aprenderam Mozart na voz de Stich-Randall. Aix, onde, um dia, segundo a lenda, um pássaro começou a dialogar como ela, no Ach, ich fuhl's da Pamina da Flauta. Depois, foi a Sophie do Cavaleiro da Rosa na gravação de Karajan e nunca o Octavian de Christa Ludwig teve um par assim, nem nunca tanto acreditámos que as rosas foram colhidas nos reinos do Paraíso: "Wo war ich schon einmal / und war so selig?" ("Onde estive eu antes, onde fui tão feliz?").

Existe pelo menos uma gravação destes festivais de Aix que pode também ser adquirida online na Amazon (França).

4 – A seguir foram os anos de ouro em que Stich-Randall visitou Lisboa regularmente. Em 59, na Condessa das Bodas e na Euridice do Orfeu de Gluck; em 60, na Donna Anna, num Don Giovanni mítico (que nos anos 90 se vendia em edições pirata como o Don Giovanni de Lisboa), ao lado da Montserrat Caballé, a começar a carreira como Donna Elvira, e de Eberhard Wächter no protagonista.

Três anos mágicos, nas três melhores mulheres de Mozart. Em 61, foi a vez de Strauss e de a vermos, filha de Minos e de Pasiphaé, na Ariadne auf Naxos, dirigida por Pedro de Freitas Branco.

A gravação de Don Giovanni a que Bénard da Costa se refere pode ser adquirida online em CD aqui.

Em 64 e em 73 repetiu a Fiordiligi. Em 69, foi a Gulbenkian que a trouxe para a Alcina de Haendel, coisa rara. Em 71, repetiu a Condessa das Bodas e, em 73, apareceu-me pela última vez. Tinha 45 anos, idade em que tantas estão ainda no apogeu. Mas aquela mulher até nisso foi como os anjos devem ser ou como a Callas também foi. Usou-se toda e usou-se até ao fim, pois, que em 72, no que alguns chamaram um "suicídio vocal", cantou de seguida três papéis "assassinos": a Leonora do Trovador de Verdi, a Norma de Bellini e a Salomé de Strauss.

Mas como esquecer a última aparição dela em Lisboa em 73, num concerto em que cantou as Quatro Últimas Canções de Strauss? A voz estava longe de ser o que havia sido. Mas havia uma tal emoção que, no final do Im Abendrot, despedida de Strauss desta vida e deste mundo, fez, da última canção, a última canção. Seguiu-se um grande silêncio. E depois, uma das maiores ovações de que me recordo. E tive a certeza que me estava a despedir de Teresa Stich-Randall.

Pouco depois, ela retirou-se. Ouvi dizer que ensinava. Depois, não ouvi dizer mais nada. Só a voz dela nos discos e essa intangível pureza que já me explicaram em termos técnicos, mas que eu só entendo em termos isangélicos.

Passaram trinta e quatro anos, incrível mas verdade. E agora sei que ela me morreu.

Numa semana em que os deuses foram ávidos, acho, escritas por Antonioni, as palavras com que me apetece acabar. Datam de 1980, quando ele soube da morte de Roland Barthes.

"A primeira coisa que pensei foi: é isso, há um pouco menos de doçura e inteligência no mundo, agora. Um pouco menos de amor (…)

(…) Creio que quanto mais avançamos neste mundo, que regride brutalmente, mais sentiremos a falta das "virtudes" que eram suas".

JOÃO BÉNARD DA COSTA
in Público

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