segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Ravel - Bolero

Se dissessem a Ravel que a sua obra mais conhecida e mais vezes interpretada, adaptada ou abusada seria o seu Bolero com toda a certeza Ravel riria com vontade. Talvez depois lhe assaltasse a dúvida e talvez como Saint Saens proibisse a edição ou interpretação dessa obra numa tentativa de dar espaço às demais.

A verdade é que o Bolero pela sua característica repetitiva dois temas repetidos alternadamente do principio ao fim num longo crescendo de 15 minutos é fantasticamente actual e penso que o será sempre.

Como muitas obras nasceu de forma fortuita resultante de uma encomenda da bailarina Russa Ida Rubinstein. Na origem esta obra é efectivamente um ballet. Curiosamente antes de conceber esta obra de arte Ravel tinha considerado fazer uma adaptação de outras obras mas por razões diversas acabou felizmente por optar por esta maravilha.

A obra foi estreada a 22 de Novembro de 1928 em Paris tendo sido logo na estreia um sucesso notável. Esta foi também uma das ultimas obras que Ravel escreveu antes de ser forçado a reformar-se por doença. Existem um sem número de anedotas sobre a obra entre as quais a celebre afirmação de uma ouvinte na estreia que teria afirmado: "Ele é louco" ao que Ravel teria respondido ao saber dessa opinião : "Foi a unica que compreendeu a obra".

Na verdade Ravel afirmou por várias vezes que a obra não continha nenhuma invenção ou desenvolvimento e que a Orquestração era do mais simples que poderia ter feito. Ravel chegou mesmo a afirmar que a obra "não continha nenhuma música" e acreditava que muitas orquestras se recusariam a interpreta-la. Ravel escreveu mesmo ao critico Calvocoressi o seguinte texto:

"I am particularly desirous that there should be no misunderstanding about this work. It constitutes an experiment in a very special and limited direction, and should not be suspected of aiming at achieving anything different from or anything more than it actually does achieve. Before its first performance, I issued a warning to the effect that what I had written was a piece lasting about seventeen minutes and consisting wholly of ‘orchestral tissue without music' - of one long, very gradual crescendo. There are no contrasts, there is practically no invention except the plan and the manner of execution. The themes are altogether impersonal ... folktunes of the usual Spanish-Arabian kind, and (whatever may have been said to the contrary) the orchestral writing is simple and straightforward throughout, without the slightest attempt at virtuosity.... I have carried out exactly what I intended, and it is for listeners to take it or leave it."

"Tenho especial interesse em que não exista qualquer malentendido acerca desta obra. É uma experiência numa direcção muito especifica e limitada e não deve ser entendida como pretendendo alcançar algo diferente de ou algo mais do que efectivamente consegue. Antes da sua primeira interpretação pública avisei que tinha escrito uma peça de 17 minutos consistindo somente de "tecido orquestral" sem música - um longo muito gradual crescendo. Não existem contrastes não existe praticamente nenhum desenvolvimento excepto no plano e forma de execução. Os temas são totalmente impessoais ... temas populares do tipo Hispano-Árabe e (apesar do que possa ter sido dito em contrário) a escrita orquestral é simples e directa sem qualquer tentativa de virtuosismo. Fiz exactamente o que tencionava e cabe aos ouvintes decidir se a devem amar ou odiar."

Repare-se além de tudo o que já dissemos na ênfase no tempo - 17 min. (outra das anedotas é a conhecida polémica com Toscanini) que o  compositor coloca e que não é muito usual. De resto como já referimos um mesmo ritmo dois temas cada um com 18 compassos tocados alternadamente 18 vezes num longo crescendo.


Os vícios e as virtudes da gravação de uma forma de arte e de uma industria

Num artigo que neste momento circula na net um solista queixa-se de ter sido gravado quando em Londres interpretava o concerto para Violino de Brahms. O artigo completo em que o músico expõe por acaso de forma bastante equilibrada e interessante a sua opinião foi publicado no Huffington Post.

Vejamos então o que o músico nos diz e se me permitem irei contrapor alguns pontos que me parecem particularmente relevantes.

Primeiro diz que normalmente nas salas de concerto isto é proibido o que é absolutamente verdade. Raramente é permitida a gravação sem autorização. Existem alguma excepções mas por norma quem fez esta gravação cometeu uma ilegalidade mesmo que seja apenas para consumo próprio.

Diz-nos depois que até se sentia lisonjeado que alguém queira gravar e partilhar e reconhece que existe um valor nessa partilha em termos de notoriedade e de relações públicas. Até aqui concordamos totalmente. Admite ainda que essa gravação o dará a conhecer a pessoas que nunca teriam a oportunidade de o ver ao vivo. Perfeito estamos em sintonia.

Depois fala-nos dos pontos que considera negativos e aí é que começam as nossas divergências. Primeiro fala-nos da questão económica que quando alguém compra um bilhete é para ouvir essa perfomance uma vez e apenas uma e que a gravação dessa performance prejudica o seu rendimento enquanto artista que também tem CD´s e que espera uma remuneração pela sua venda. A razão da minha discordância com o músico tem simplesmente a ver com dois pontos muito importantes. A gravação de uma performance não deixa de ser uma gravação. Nunca a poderá substituir. Nunca uma gravação pode dar a mesma emoção do que a partilha ao vivo logo por mais que se deseje "gravar" esse momento existe uma vez e não é reprodutível. Pode obviamente o documento histórico, a gravação dar a partilhar essa experiência com outros mas será sempre diferente da presença no local. Depois obviamente uma gravação em smartphone nunca poderá ter qualidade sequer aproximada para se comparar a uma gravação comercial.

O músico fala-nos em seguida da partilha dos CDs e diz que alguma partilha dos mesmos é inevitável. Caro amigo obviamente é inevitável. Eu também partilho livros e outras obras de arte. Não as copio ilegalmente mas empresto-as e por vezes gravo-as para poder partilhar com mais pessoas. Esta partilha faz parte do direito de propriedade e querer privar um individuo desse direito no pressuposto que retira um beneficio ao artista é ridículo.

O problema é quando o valor do que estão a oferecer nessa embalagem é de tal forma desproporcionado do seu verdadeiro valor que cria o incentivo económico para a pirataria industrial. Não está nunca no "fair use" e partilha que sempre foi feita e é inerente à  própria forma de arte. convidar um amigo para ouvir em minha casa uma obra num CD que comprei o fazer o mesmo através da net é exactamente a mesma coisa. Não é essa partilha o problema porque essa tipicamente conduz a uma venda futura (uma ou mais). O problema que a industria tem de resolver isso sim é o valor do que está a oferecer e se o que está a dar corresponde efectivamente à necessidade de quem compra.

Fala por fim o músico do problema da gravação das falhas e de como isso pode prejudicar a memória que essa sim pode ser perfeita (ao invés da gravação ao vivo que nunca o será). Pois não nunca é. E é por essa mesma razão que hoje em dia tantas vezes não conseguimos apreciar os concertos ao vivo porque estamos obcecados com a perfeição de uma qualquer gravação. Ao vivo nunca será perfeito. Precisamente por isso é que não pode ser nunca "o mesmo" caro James Ehnes. As imperfeições não retiram valor acrescentam valor. Porque são humanas e porque a música é isso mesmo.

Mas não te levo a mal James Ehnes porque precisamente nesse ponto tocaste na verdadeira questão. É que as gravações, o hábito das gravações elevaram a nossa expectativa à perfeição. E por isso a cruel comparação do gravado ao vivo vos parece tão perigoso. Ou não ... porque será porventura a redenção da música: A percepção de que a gravação sendo perfeita não é a verdadeira obra. É uma cópia. A verdadeira é apenas e tão somente a que existiu ao vivo. Simplesmente naquele momento.

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