domingo, 24 de abril de 2011

Claude Debussy (1862 - 1918)

É obviamente muito difícil senão impossível marcar a transição entre o romantismo e a música do século XX mas se o procurássemos fazer então certamente um dos capítulos mais interessantes e significativos dessa passagem seria desempenhado por Claude Debussy. Não nos apressemos no entanto e guardemos esta conversa para a conclusão.

Claude Debussy nasceu em Paris a 22 de Agosto de 1862 numa familia de pequena burguesia. O pai tinha uma loja de loiça e não vivia propriamente desafogado financeiramente. Debussy o mais velho de 5 irmãos começou a estudar piano no conservatório onde a sorte o fez encontrar Nadezhda von Meck (conhecida mecenas de Tchaikovsky) que o contratou como professor de piano dos seus filhos. Este facto proporcionou-lhe além da satisfação da óbvia necessidade material um contacto directo com músicos e intelectuais.

Em 1880 Debussy começa os seus estudos de composição com Ernest Guiraud tendo 4 anos mais tarde vencido o Prémio de Roma um reputado prémio que oferecia aos vencedores dois anos de estudos pagos em Roma. Apesar da reputação do prémio esses dois anos em Roma foram frustrantes para Debussy do ponto de vista criativo. A obra com que venceu o prémio, uma cantata chamada Enfant Prodigue não é também das mais representativas do talento ou do estilo de Debussy. dizem as más linguas que teve de ser suficientemente castrada para satisfazer os gostos tradicionais do júri. Ainda de 1880 é a composição Beau Soir (L6) uma das mais conhecidas dos primeiros anos. A primeira interpretação proposta é de Renne Flemming mas proponho igualmente uma outra de Barbra Streisand (de que gosto muito também, atenção é uma adaptação não pretende ser igual ... )

Lorsque au soleil couchant les rivières sont roses
Et qu'un tiède frisson court sur les champs de blé,
Un conseil d'être heureux semble sortir des choses
Et monter vers le coeur troublé.

Un conseil de goûter le charme d'être au monde
Cependant qu'on est jeune et que le soir est beau,
Car nous nous en allons, comme s'en va cette onde:
Elle à la mer, nous au tombeau.

Torna-se pianista acompanhador da classe de canto de Madame Moreau-Sainti onde conhece Marie Vasnier por quem se apaixona. É também na biblioteca dela que encontra obras de Verlaine que marcarão senão o inicio pelo menos o crescimento exponencial da influência da literatura na obra de Debussy. Aliás Paul Dukas diz que nada influenciou mais Debussy do que a literatura.

Em 1890 compõe Clair de Lune que faz parte da Suite Bergamasque (L75) para piano. Não resisto a mostrar-vos uma versão (uma transcrição excelente) para violino interpretada por David Oistrack.

Em 1894 é interpretada pela primeira vez "L´Aprés Midi d´un Faune" uma das suas obras mais significativas (nesta interpretação a Orquestra Sinfónica de Londres dirigida por Stokowski) - podem ouvir aqui a segunda parte desta fabulosa interpretação. Esta obra baseada num poema de Mallarmé descreve o acordar de um Fauno, ser mitológico meio humano e meio bode e as memórias voluptuosas dos seus encontros com as ninfas.

[...] ou si les femmes dont tu gloses
Figurent un souhait de tes sens fabuleux !
Faune, l’illusion s’échappe des yeux bleus
Et froids, comme une source en pleurs, de la plus chaste :
Mais, l’autre tout soupirs, dis-tu qu’elle contraste
Comme brise du jour chaude dans ta toison ? [...]

A propósito deste poema há quem o considere o expoente máximo da literatura francesa. Não conseguindo ser tão absoluto a forma e a melodia dos sons é na verdade perfeita, tão perfeita que qualquer tradução sofre bastante e por isso não ouso desta vez uma tradução.

Ainda em 1894 termina a composição da sua Ópera (a unica que escreveu) e que é também o seu primeiro trabalho sinfónico de grande dimensão Pelleas e Melisande . Esta obra apenas foi estreada em 1902 tendo tido uma recepção relativamente tumultuosa em grande parte pelo conflito com Maeterlink a quem Debussy tinha prometido que o papel de Melissande seria para a sua companheira Georgette Leblanc. Porém Debussy faltou à promessa entregando esse papel a Mary Garden.

O seu Quarteto de Cordas em Sol Menor data também  desta época (1893) sendo possivelmente o trabalho mais significativo de Debussy no que diz respeito à música de câmara.

Em 1899 rompe definitivamente com Gaby Dupont iniciando uma relação com Marie-Rosalie Texier com quem casa ainda nesse ano. Termina os seus Nocturnos para Orquestra que são interpretados em 1900 nos Concertos Lamoureux.

Em 1903 inicia a composição de La Mer que viria a terminar dois anos depois. Entretanto do ponto de vista pessoal apaixona-se por Emma Bardac dedicando-lhe Fêtes Galantes (L104 - Segunda série). Deixem-me aqui abrir um parenteses para vos falar de Léo Ferré que muito mais tarde haveria também de tentar musicar estes poemas de Verlaine. Se querem que vos diga sinceramente não consigo escolher qual a versão que prefiro. O exemplo que vos mostro é o Colloque Sentimental.

COLLOQUE SENTIMENTAL

Dans le vieux parc solitaire et glacé
Deux formes ont tout à l’heure passé.

Leurs yeux sont morts et leurs lèvres sont molles,
Et l’on entend à peine leurs paroles.

Dans le vieux parc solitaire et glacé
Deux spectres ont évoqué le passé.

- Te souvient-il de notre extase ancienne ?
- Pourquoi voulez-vous donc qu’il m’en souvienne ?

- Ton cœur bat-il toujours à mon seul nom ?
Toujours vois-tu mon âme en rêve ? - Non.

- Ah ! les beaux jours de bonheur indicible
Où nous joignions nos bouches ! - C’est possible.

Qu’il était bleu, le ciel, et grand l’espoir !
- L’espoir a fui, vaincu, vers le ciel noir.

Tels ils marchaient dans les avoines folles,
Et la nuit seule entendit leurs paroles.

Apropriado exemplo porque a mulher de Debussy ao saber da traição  tenta o suicídio com um tiro no estômago e muitos dos amigos de Debussy afastam-se. Segue-se um doloroso processo de divórcio (Emma que também era casada também divorcia-se igualmente) findo o qual os dois casam (1908). Em 1905 nasce a única filha de Debussy que viria a falecer com 19 anos um ano após a morte do pai vitima de difteria. É também em 1905 que é finalmente completada La Mer e estreada também nos Concertos Lamoureux.

Em 1906 a vida do compositor francês cruza-se com Francisco de Lacerda (1869-1934) a quem confia a partitura "Festas de Polymnie" de Rameau que o editor Durand quer incluir na edição dos trabalhos completos do compositor. O maestro Ernst Ansermet defende que já antes os dois compositores teriam trocado correspondência sobre por exemplo o folclore espanhol e português e que este facto teria mesmo inspirado uma parte da obra Danças Sagradas e Profanas (1904).

Em 1908 Debussy pela primeira dirige uma obra sua precisamente La Mer uns dias antes de casar com Emma. Estreia-se nesse ano também Children´s Corner (aqui numa interpretação do próprio Debussy) dedicado à sua filha "chou-chou" começando também as dificuldades financeiras que o iriam atormentar nos últimos anos da sua vida. Contrariamente ao que o título pode dar a entender estas não são peças destinadas a ser executadas por crianças, são antes uma evocação das recordações de infância.

A sua saúde também não era a melhor e no ano seguinte começaram os primeiros sintomas do cancro no colon que lhe acabaria por ceifar a vida cerca de 9 anos mais tarde. Neste mesmo ano começa a composição  de uma obra baseada no conto de Edgar Allan Poe - A Queda da Casa de Uscher (traduzida para francês por Baudelaire). Como vos dizia há pouco a presença da literatura é uma constante na obra de Debussy. O compositor infelizmente faleceu demasiado jovem para nos mostrar tudo o que seria capaz.

Em 1910 assiste à estreia de Pássaro de Fogo de Stravinsky e os dois compositores encontram-se pela primeira vez. No ano seguinte a sua obra Ibéria é estreada em Nova Iorque por Mahler. Apesar do sucesso das suas obras as dificuldades financeiras acumulam-se e em 1912 Debussy é obrigado a pedir um empréstimo ao editor Durand. Apesar de uma actividade frenética ( Debussy volta à critica musical), continua a dirigir e a compor estas dificuldades não passam e em fins de 1913 com a doença da mulher Debussy chega a falar em suicídio.

Em 1915 avisa o seu editor que irá compor uma série de seis sonatas para vários instrumentos. Destas seis acabará apenas por compor três. Uma sonata para violoncelo e piano, uma sonata em trio (harpa, flauta e viola de arco) e mais tarde a de violino e piano. No fim de 1915 é ouvida pela primeira vez a Berceuse Heroïque (em homenagem ao rei Alberto I da Bélgica e seus soldados, não nos esqueçamos que entretanto se tinha iniciado a I Guerra Mundial) e ainda em Dezembro desse ano ouve-se pela primeira vez Noel des Enfants qui n´ont plus de maison (cujo enorme sucesso popular viria a irritar bastante Debussy).

O estado das finanças de Debussy pioram ainda mais em 1916 um tribunal decide contra ele e obriga-o a pagar a pensão devida a Lilly Texier (ex-esposa) que não pagava desde 1910. Talvez por isso a somar a todos os restantes trabalhos tinha aceite fazer a revisão da edição completa das obras de Chopin e das Sonatas de Bach para violino e piano que o editor Durand pretende publicar numa série de obras completas dos grandes compositores.

Em 1917 é interpretada pela primeira vez a sua sonata para Violino e Piano (Gaston Poulet ao violino e o próprio Debusssy ao piano). No final desse ano, em Setembro dá os seus dois últimos concertos em Biarritz. Debussy faleceu apenas alguns meses mais tarde a 25 de Março de 1918 no meio do bombardeamento de Paris na grande ofensiva alemã da primavera desse ano. Debussy faleceu portanto sem ver o fim da primeira guerra mundial que tanto o havia deprimido.

A obra de Debussy é impossível de definir. É provavelmente um dos mais originais compositores de sempre. O caminho que escolheu é ímpar na história da música. Existem muitos que o classificam com sendo o equivalente do impressionismo na música e é verdade que as suas obras têm títulos que deixam entender um significado concreto, real das suas composições. Porém não deixa também de ser um romântico como é fácil de entender pelos poemas que musicou de praticamente todos os grandes vultos do romantismo francês. Como já vos disse neste curto texto por duas vezes mais do que a pintura Debussy foi fortemente influenciado pela literatura. Seria assim justo defini-lo mais como um romântico do que como um impressionista. Aliás o seu estilo de vida pessoal não deixa nada a dever aos grandes românticos que o precederam. Mas seria uma injustiça procurar defini-lo apenas dessa forma porque nos arriscaríamos então a ver Debussy apenas como um neo-romântico um compositor desfasado do seu tempo quando na verdade ele foi possivelmente dos mais progressistas compositores da história da música compondo muito antes de Stravinsky ou Schoenberg musica atonal ou destruindo a hegemonia da forma de Sonata recriando-a.

Debussy era um homem complexo e de ideias por vezes aparentemente contraditórias. Tanto nos dizia que a música deveria ser tão hermética que deveria ser quase uma cabala como defendia a sua simplicidade com o o seu contemporâneo Satie. Uma coisa é certa nesse inicio do século XX criaram-se duas escolas de modernidade. A Vienense verdadeiramente hermética e sombria e a Parisiense aparentemente simples e luminosa ... pelo menos é isto que eu penso, como também deve ser claro para vós para que lado se inclina a minha simpatia ...

Para terminar melhor só com música e por isso deixo-vos com um dos meus poemas preferidos. Il pleut sur mon coeur de Verlaine que Debussy musicou em 1887 (aqui numa fantástica interpretação de Teresa Stich-Randall, duvido muito que encontrasse outra melhor ...)

Il pleure dans mon coeur
Comme il pleut sur la ville ;
Quelle est cette langueur
Qui pénètre mon coeur ?

Ô bruit doux de la pluie
Par terre et sur les toits !
Pour un coeur qui s'ennuie,
Ô le chant de la pluie !

Il pleure sans raison
Dans ce coeur qui s'écoeure.
Quoi ! nulle trahison ?...
Ce deuil est sans raison.

C'est bien la pire peine
De ne savoir pourquoi
Sans amour et sans haine
Mon coeur a tant de peine !

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