Como prometido vou juntar à nossa lista de 10 melhores momentos da música clássica uma categoria polémica. Vou falar-vos de 10 casos em que uma estreia (ou uma interpretação de uma obra) provocou tal escândalo entre a assistência que o público chegou a manifestar-se de forma violenta ou pelo menos pouco ortodoxa. Uma forma de vos mostrar as paixões que a música clássica pode despertar. Iremos procurar escolher exemplos que estão somente ligados à parte artística embora existam casos que obviamente estão na fronteira.
A primeira obra de que vos quero falar é precisamente um dos casos em que não foi propriamente a componente artística que provocou o levantamento mas antes o carácter nacionalista de uma das suas árias. estamos a falar da ópera La Muette de Portici de Daniel Auber (1782-1871). A obra com um libretto de Germain Delavigne descreve o levantamento popular em Nápoles contra o domínio Espanhol. A ópera foi estreada em Paris a 28 de Fevereiro de 1828 sem grande história, bem recebida pela critica e pela audiência. artisticamente é uma obra relevante dado que é considerada a uma das primeiras "Grandes Óperas" por ter trazido ao género uma dimensão teatral e de consistência do argumento até então inexistente. Relevante no entanto para este post foi a interpretação ocorrida em Bruxelas em Agosto de 1830. Esta representação incendiou a audiência. Os belgas que aspiravam à auto-determinação tinham de novo acabado de serem anexados à Holanda viram na ária "Amour Sacré de la Patrie" um espelho da sua situação. A sequência de eventos que se gerou acabou por resultar na independência da Bélgica proclamada pelo Governo Provisório da Bélgica a 30 de Setembro de 1830.
Mieux vaut mourir que rester misérable !
Pour un esclave est-il quelque danger ?
Tombe le joug qui nous accable
Et sous nos coups périsse l'étranger !
Amour sacré de la patrie,
Rends nous l'audace et la fierté ;
À mon pays je dois la vie ;
Il me devra sa liberté.
Numa tradução aproximada isto significa o seguinte:
Mais vale morrer que permanecer na miséria
Para um escravo existe algum perigo?
Cai o jugo que nos domina
E morra o estrangeiro com os nossos golpes!
Amor sagrado da pátria,
Devolve-nos a audácia e o orgulho;
Ao meu país devo a vida;
Ele me deverá a liberdade.
E aqui fica a ária . Hoje em dia é uma obra raramente interpretada embora a abertura seja frequentemente interpretada em concerto. É uma pena porque é uma história interessante sobre a liberdade, o seu valor e a sua conquista.
A segunda obra é mais uma ópera esta realmente desdenhada por simples questões artísticas e como é frequentemente o caso injustamente desconsideradas. Estamos a falar da ópera Benvenuto Cellini estreada em Paris a 10 de Setembro de 1838 e que hoje continua a ser ignorada (com excepção da abertura que é regularmente interpretada em concerto). Injusto certamente porque esta ópera representa Berlioz na sua máxima capacidade orquestral, profundamente romântico. É certo que o libretto é péssimo mas a música é extraordinária e merece só por si um lugar na história da música. O que se passou na estreia foi obviamente um caso de boicote por parte do "Teatro dos Italianos" companhia e género que via em Berlioz um concorrente potencial a abater. Os assobios, barulhos, toda o tipo de evento destinado a fazer parar a performance começaram logo após a abertura e não se interromperam até ao fim. O certo é que conseguiu tendo a obra tido o mesmo tipo de recepção em Londres em 1853 de pouco servindo o apoio dos músicos e do maestro.
A obra teve uma recepção diferente para melhor na Alemanha sobre o patrocínio de Liszt mas insuficiente para que resistisse ao afastamento do reportório que faz desta obra uma das mais injustamente afastadas dos palcos. Aqui fica uma das árias, "Seul pour lutter sur les monts les plus sauvages".
Não sei se será o poder das palavras mas o terceiro caso é também uma ópera mas a verdade é que este género na música clássica parece incendiar paixões. A nossa terceira obra também é uma ópera neste caso uma obra de Wagner. Neste caso particular a razão teve origem num facto que facilmente se poderia classificar como pouco representativo mas na verdade desconhece-se a relevância que acabou por ter na história da música. Wagner procurava então estabelecer-se em Paris, à época a capital da Ópera. Nesse sentido supervisionou e alterou significativamente a sua ópera Tannhauser acrescentando-lhe um bailado, uma exigência da sala onde iria ser estreado. Wagner procurou fazê-lo mantendo a consistência da obra e por essa razão contrariamente ao hábito colocou o dito bailado no primeiro acto. Dificilmente se pode entender hoje que um grupo organizado de aristocratas, o Jockey Club habituados a entrarem apenas no Ballet (no segundo acto) tivessem conseguido boicotar efectivamente a estreia de Wagner em Paris e a sua ambição de se fixar na capital francesa. Será difícil extrair deste facto consequências mas permanecerá uma duvida se um Wagner "parisiense" teria escrito a sua trilogia ou se teria sido o compositor preferido do conhecido ignóbil ditador e assassino. Wagner está aliás no centro de várias outras polémicas quase todas fruto dessa associação. Recentemente uma interpretação desta mesma obra Tannhauser num cenário Nazi que pretendia homenagear as vitimas do holocausto deu origem a mais uma forte contestação e mesmo ao cancelamento do espectáculo.
Aqui fica uma versão do bailado que tanta polémica causou e com consequências imprevisíveis na história ...
Diga-se em nome da verdade que uns anos mais tarde, mais precisamente em 1887 houve uma segunda tentativa de trazer Wagner a Paris mais precisamente com Lohengrin mas de novo houve tumultos desta vez já mais relacionados com a crescente tensão entre a Alemanha e a França e os sentimentos anti-germânicos existentes.
Como este post já vai longo as demais 7 estreias pouco promissoras ficam para uma próxima ocasião. Como podem ver não é só o desporto que suscita paixões !