Este capitulo apesar de curto promete, acredito gerar alguma polémica ou pelo menos alguma discussão entre os leitores deste blog. Digo-vos desde já que é um tema com que me identifico bastante o que está expresso regularmente na expressão "ao vivo é outra coisa" que adoptei de outras instâncias e também no subtítulo deste blog, mas lá iremos ...
Os outros capítulos deste livro já analisados:
Capitulo 2
Capitulo 1
Aproveito também para vos lembrar que já tínhamos falado deste tema quando abordamos o pianista e compositor Canadiano Glenn Gould que considerava a gravação a verdadeira forma de transmitir música. No link que aqui coloquei traduzi uma entrevista que deu à High Fidelity e em que aborda este assunto (a entrevista é muito sui-generis dado que Glenn Gould é simultâneamente o entrevistador e o entrevistado).
Tenho noção que para os dias de hoje - de consumo imediato - este post será porventura longo demais, mas lá está eu acredito no poder da palavra e acreditem que vale a pena ler até ao fim ...
O capítulo começa com uma citação de Philip Sousa (1854 - 1932) que dizia a propósito dos gira-discos (não sei na altura seriam exactamente chamados assim ou sequer se era esse o formato prevalecente já que existiam também os rolos de Edison) "Estas máquinas falantes vão arruinar o desenvolvimento artístico da música neste país. Quando era rapaz ouvia grupos de pessoas à frente de suas casas cantando as canções do dia ou canções antigas. Hoje ouvimos estas máquinas infernais noite e dia. Em breve não teremos uma única corda vocal. Há-de chegar um dia em que ninguém estará disposto a aceitar a nobre disciplina de aprender música. Todos teremos a música já feita nos nossos armários. Algo é irremediavelmente perdido quando não estamos na presença de pessoas fazendo música. O canto do rouxinol é delicioso porque é o próprio rouxinol a fazê-lo".
Sei que parece um tanto reaccionário mas como diz Alex Ross no seu livro antes de enviarmos este senhor para o esquecimento no que diz respeito a esta opinião (saberíamos sempre separar a sua obra enquanto compositor :-)) é bom reflectir um pouco sobre as profundas mudanças que a música sofreu em menos de um século.
Como diz Alex Ross uma coisa é facto - a música é hoje algo que raramente somos nós a fazer ou mesmo que ouvimos ao vivo alguém a fazer. Outra coisa também é um facto é que desde Sousa tem havido o clã dos adeptos da catástrofe e o clã dos adeptos da gravação enquanto libertadora tanto em termos conceptuais como em termos da democratização do acesso. Para que fique claro estou a escrever isto a ouvir o presente de anos que o meu filho me ofereceu ... um conjunto de 3 DVD com as integrais de Beethoven por Karajan e a sua filarmónica de Berlim. Para que fique claro sem gravação não vos poderia ter mostrado neste blogue tantas e tantas gravações históricas e sem dúvida que esse é uma oportunidade e um valor inestimável. Não teria idade nem ocasião de ver Karajan ao vivo mas posso agora fazê-lo. Mediado por uma gravação é certo mas posso. E posso também ouvir Casals, Jaqueline du Pré e lamentar que Suggia tenha gravado tão pouco.
Mas como propõe Alex Ross vejamos pelo trabalho dos teóricos que têm acompanhado as modificações sofridas pela música quais são as alterações que a gravação veio introduzir para além da democratização já referida. Em primeiro lugar as gravações em estúdio permitem correcções que hoje vão até á correcção das notas desafinadas criando assim uma realidade virtual de perfeição. Este efeito de virtualização foi ainda amplificado pela digitalização do processo que torna estas correcções/alterações praticamente ilimitadas nas suas possibilidades. Contrariamente ao que pensamos esta tecnologia pode ser e é utilizada nas gravações de música clássica que são tudo menos "reproduções fieis de uma realidade". São isso sim criações artificiais de uma realidade perfeita. Isto é de certa forma pernicioso se não nos apercebermos dessa diferença por quanto são essas gravações que servem de referência para as comparações que efectuamos: Há literalmente pessoas que hoje em dia não conseguem ir a uma sala de concerto porque nunca vão encontrar aquele som perfeito que ouviram na sua sala de estar. Alex Ross vai mais longe dizendo que o nosso comportamento na sala de espectáculo é modelado pelo que acontece na sala de estar. Que o silêncio entre andamentos se impôs com mais facilidade porque é isso que acontece ao ouvirmos uma gravação em que claramente não aplaudimos nem exteriorizamos o nosso prazer (ou desprazer).
Alex Ross faz então o paralelo com o principio da incerteza de Heisenberg (um principio que diz que é impossível observar determinados eventos físicos sem os alterar) para nos dizer que não só a gravação alterou a forma como ouvimos como também alterou a forma como os interpretes fazem música. Essa alteração foi essencialmente no sentido da uniformização não só por imitação dos modelos considerados superiores mas também e sobretudo porque os próprios músicos ao ouvirem-se gravados passaram a detectar falhas (ou maneirismos ou outros "defeitos" de interpretação) e procuravam corrigi-los. Por outras palavras a gravação veio introduzir de forma muito mais ditatorial uma "forma" correcta e o culto do tecnicamente perfeito mesmo que no prejuízo da espontaneidade e da paixão.
Neste ponto deixo momentaneamente o livro de Alex Ross para falar então um pouco da relação deste tema com o nosso "ao vivo é outra coisa" e com o subtítulo deste blog "a única música que precisa de embalagem é a música de plástico" até porque curiosamente as duas ultimas páginas do capitulo do livro abordam precisamente este assunto embora numa ordem diferente, num ângulo ligeiramente diferente e certamente com mais qualidade mas enfim alguma coisa tem que ficar para quando comprarem o livro do Alex Ross :-)
Quando vos digo que "ao vivo é outra coisa" é porque efectivamente é outra coisa. A expectativa do inicio da música (não há botão de play numa sala de concertos), as vozes de outros seres humanos, a respiração dos artistas - se estivermos suficientemente perto - as suas expressões únicas, as suas falhas, a forma única como tocaram naquela ocasião, o comportamento da audiência nada disto passa numa gravação. E convenha-se que contrariamente a outros tipos de música que nasceram já na época da gravação e que foram concebidos essencialmente para ela a "música clássica" foi feita para ser ouvida ao vivo. Significa então que não há espaço para as gravações? Que devemos já correr e deitar fora todos os dvds e cds e LPs que tenhamos? Não claro que não. As gravações permanecem um óptimo meio para democratizar o acesso e para registar para a posteridade o que de outra forma se perderia. Aliás essa é a diferença fundamental entre o evento ao vivo. É que a gravação exige, é feita "para sempre". A música ao vivo é a música daquele instante. Alex Ross termina o seu capítulo com a história de uma gravação da Filarmónica de Viena no dia 16 de Janeiro de 1938 dirigida então por Bruno Walter e interpretando a Nona Sinfonia de Mahler. Este foi o ultimo concerto antes dos Nazis esmagarem a Áustria. Alex Ross conta que na assistência nesse dia estava Hans Fantel (critico do New York Times) com o seu pai longe de imaginar que essa seria a ultima vez que ouviria a Filarmónica em companhia do seu pai que haveria de desaparecer enquanto "inimigo do reich" diz Hans Fattel ao ouvir esta gravação recentemente tornada pública "Tive oportunidade de reconhecer e apreciar a aura diferente desse Domingo. Pude sentir a sua intensidade não pré-fabricada um turbilhão emocional muito diferente de muitas outras gravações da Nona de Mahler que tenho ouvido desde então". Obviamente no mundo de hoje ouvir esta gravação é tão fácil quanto ir ao site da Naxos e ... ouvir ... Sim é pago mas vale os Euros se estivermos interessados no documento histórico ou em experimentar a emoção da gravação agora que conhecemos o seu contexto. De certa forma esta liberdade de se procurar e de encontrar abre o espaço ao segundo ponto.
Quanto à "música de plástico que precisa de embalagem" a questão é que na verdade a música já existia sempre existiu, muito antes de uma "industria" a ter formato em pacotes e embalagens. Estes pacotes e embalagens serviram o seu fim, tiveram e têm um papel mas esse papel possivelmente acabou ou sendo menos dramático reduziu-se. A própria tecnologia de gravação que os criou acabou por criar também o instrumento para a sua renovação. Acredito que com as formas de acesso que hoje temos à música vamos incentivar de novo a criatividade, não mais terão artistas de "inventar" músicas para perfazer a duração de um LP ou de um CD e nós enquanto consumidores também poderemos comodamente ouvir mais, ouvir antes de comprar, comparar, receber recomendações e sobretudo estar muito mais abertos a vários tipos de música a que de outras forma dificilmente teríamos acesso porque escondidos atrás das super-produções que recebiam o peso promocional da referida industria. É a liberdade de escolha sem embalagem. Acredito que neste universo mais livre a música clássica irá encontrar o seu lugar entre as outras formas sem torres de marfim, sem complexos de superioridade mas sobretudo sem ser uma "música do passado" mas antes uma música do presente ...
Dois livros citados por Alex Ross neste capitulo e que penso merecem a vossa atenção futura. Um bastante recente: Performing Music in the Age of Recording de Robert Philip e o histórico (porque inevitavelmente citado e o fundamento para bastantes reflexões posteriores: The Work of Art in the Age of Mechanical Reproduction (Penguin Great Ideas) de Walter Benjamin.