Este é mais um post na nossa sequência sobre Glenn Gould. Podem ler o anterior post em que falávamos das suas gravações aqui.
Glenn Gould além da sua actividade enquanto pianista era também um notável escritor. Não só acerca de música chegando mesmo à poesia. Aliás Gould dizia que se não fosse músico seria poeta. Do que escreveu e do que tenho vindo a conhecer ao escrever esta série de posts hoje vou-vos traduzir um artigo interessantíssimo que Gould escreveu para a revista High Fidelity em Fevereiro de 1974. O artigo é bastante longo porém creio que vale a pena ganharem uns minutos do vosso tempo a lerem-no dado que não só ficam a saber muito sobre a forma como Gould pensava, como ainda podem rir um pouco (as perguntas e o diálogo que ele imagina têm por vezes muita piada), como adicionalmente ainda ganham uma forma completamente diferente de percepcionar a arte (para além da música).
Claro que nós, que gostamos de música ao vivo discordamos absolutamente de uma parte da teoria de Gould mas não obstante - como diria Bernstein - Gould é suficientemente interessante e intelectualmente honesto para que decidamos publica-lo :-)
Porque este artigo é muito longo dividimos-lo em várias partes. Esta é a primeira parte. O original em Inglês pode ser lido aqui onde podem encontrar para além deste texto muitos outros documentos interessantes escritos por e sobre Gould, nitidamente um site a visitar para aprofundarem o vosso conhecimento sobre este génio da música. Eu já o fiz e garanto-vos que tenho agora uma ideia completamente diferente sobre ele.
Em alguns pontos deste artigo introduzimos alguns comentários nossos quer para discordar de Gould (desculpem, mas não resistimos) quer para explicar o contexto e tornar o texto compreensível. Estes comentários estão claramente indicados por estarem escritos assim. Por outro lado a tradução que fiz procurou sempre que possível ser fiel ao nível de linguagem utilizado, coloquial por vezes erudito noutras. O artigo original tem essa dicotomia que procuramos manter embora em português não resulte tão bem eventualmente porque não existe esse tipo de tradição na nossa linguagem escrita e certamente também por óbvia falta de talento por parte do tradutor.
Glenn Gould entrevista Glenn Gould sobre Glenn Gould - High Fidelity, Fevereiro 1974.
Glenn Gould (como jornalista : g.g.): Sr. Gould Creio que - perdoe-me o facto de estar a ser tão directo - creio que tem a reputação de ser uma "noz dificil de quebrar" no que diz respeito a entrevistas?
GLENN GOULD (como ele próprio : G.G.): Nunca ouvi tal coisa!
g.g.: Bem na verdade é o tipo de rumor que nós jornalistas apanhamos de fontes espalhadas por aí, mas quero assegurar-lhe que estou pronto a retirar qualquer pergunta que considere menos apropriada.
G.G.: Oh, não consigo antever qualquer problema desse tipo.
g.g.: Então para tudo ficar claro desde já, há algum tema que não possamos de todo tratar?
G.G.: Bem certamente não consigo pensar em nenhum tema fora de limites. Música à parte claro.
g.g.: Bem Mr. Gould eu não quero voltar atrás com a minha palavra. Sei que a sua participação nesta entrevista nunca foi estabelecida contratualmente, mas foi firmada com um aperto de mãos.
G.G.: Figurativamente claro está.
g.g.: Claro, e assumi que passaríamos uma grande parte do nosso tempo debatendo assuntos de índole musical.
G.G.: Bem, acha que é essencial? É que sabe a minha visão pessoal de entrevista - e como eventualmente sabe fiz umas quantas - é que a matéria mais relevante, mais inspiracional normalmente provem de áreas não relacionadas com a especialidade do entrevistado.
g.g.: Por exemplo ?
G.G.: Bem por exemplo quando preparei documentários para rádio entrevistei um teólogo sobre tecnologia, um hidrógrafo acerca de William James, um economista acerca de pacifismo e uma dona de casa acerca do mercado de arte.
William James (1842-1910) foi um psicólogo e filósofo americano pioneiro na psicologia da educação, experiências religiosas e misticismo.
g.g.: Mas seguramente também entrevistou músicos acerca de música?
G.G.: Ah sim, claro. Normalmente para os pôr à vontade à frente do microfone. Mas foi muito mais interessante falar com Pablo Casals sobre por exemplo o conceito de Zeitgeist que, claro, não está relacionado com música.
Pablo Casals sabeis quem é certamente. Zeitgeist: O espírito do tempo ou de uma geração. Poderia também ser uma personagem da Marvel Comics ...
g.g.: Sim ia precisamente arriscar esse comentário.
G.G.:Ou Leopold Stokowski acerca da possibilidade de viagens interplanetárias, o que é - penso que concordará - não obstante Stanley Kubrick - uma grande digressão.
Leopold Stokowski (1882-1970) grande maestro conhecido pelo seu espírito dinâmico e grande esforço na obtenção de um som perfeito nas gravações orquestrais. A referência a Kubrick está obviamente relacionada com o filme 2001 - Odisseia no Espaço em que viagens interplanetárias e música ficaram intimamente relacionadas com a cena da nave a acostar ao som de Strauss entre outros ...
g.g.:Bem isto na realidade coloca um problema Mr. Gould, mas deixe-me tentar colocar-lhe a questão de forma mais assertiva. Existe um tema que gostaria particularmente de discutir ?
G.G.: Bom, na realidade não pensei muito nisso, mas assim de repente poderíamos falar da situação política no Labrador ?
Labrador - Estado Federal do Canadá. Não faço ideia do problema que existia na altura, ou sequer se existia problema. Eventualmente a junção com Newfoundland poderia ser discutida na altura.
g.g.: Estou certo que isso poderia produzir um diálogo estimulante, Mr. Gould, mas penso que devemos ter em atenção que High Fidelity é uma revista essencialmente para os Estados Unidos da América.
High Fidelity : Revista impressa entre 1951 e 1989 cobrindo equipamento e assuntos relacionados com música.
G.G.: Sim claro. Nesse caso que tal os direitos aborígenes no Oeste do Alaska?
g.g.:Sim. Não quero certamente ignorar temas tão interessantes quanto esses em termos de audiência porém dado que High Fidelity é essencialmente orientada para uma audiência interessada em música deveríamos pelo menos começar a nossa conversa com um tema relacionado com as artes.
G.G.: Oh, certamente. Que tal então examinarmos a questão dos direitos aborígenes reflectidos nos estudos etno-musicais realizados em Point-Barrow?
g.g: Bem tenho de confessar que esperava uma linha mais convencional por assim dizer, Mr. Gould. Como estou certo que sabe, a questão quase obrigatória que diz respeito à sua carreira é a controvérsia concerto-vs-gravação, e penso que devemos pelo menos tocá-la.
G.G.: Bem não tenho qualquer objecção em repsonder a umas quantas questões sobre esse tema. No que me diz respeito envolve primariamente questões morais mais do que musicais portanto esteja à vontade.
g.g.: É muito simpático da sua parte aceder a essa questão. Vou tentar ser breve então para que possamos cobrir outros assuntos.
G.G.: É justo.
g.g.: Bem foi citado por várias vezes dizendo que o seu envolvimento com a gravação - com os media em geral - representam um envolvimento com o futuro.
G.G.: Está correcto. Até o disse nas páginas deste excelente jornal.
g.g.: Exacto. E disse também que ao invés a sala de concerto, o palco de recital, a casa de ópera representa o passado - um aspecto do seu passado em particular, talvez, mas também o passado da música em geral.
G.G.: É verdade, embora deva admitir que o meu único contacto com uma opera foi através de uma inflamação da traqueia que apanhei quando toquei no velho Festspielhaus em Salzburgo. Como sabe era um edifício bastante ventoso e eu ...
g.g.: Bem talvez possamos discutir a sua saúde num outro momento mais oportuno Mr. Gould mas ocorre-me que - e espero que me desculpe por dizê-lo - existe algo inerentemente egoísta acerca de opiniões deste tipo. Afinal decidiu deixar todas as interpretações em público há quanto tempo - dez anos?
G.G.: Nove anos e onze meses na data deste número precisamente.
g.g.: E admite que a maioria das pessoas que optam por mudanças radicais na sua carreira mantêm a noção de que, embora relutante, o futuro está do lado delas?
G.G.:É encorajador pensar assim, claro, mas tenho de contrariar a utilização do termo "radical". É certo que dei o salto baseado na convicção que dado o estado da arte, uma imersão total nos media representaria um desenvolvimento lógico - e continuo convencido disso. Mas muito francamente muito embora gostemos todos de equacionar formulas "passado-futuro" os principais patrocinadores de tais convicções, as principais motivações dessas mudanças radicais para utilizar o seu termo, estão normalmente relacionadas com uma situação tão prosaica como a resolução do desconforto do presente.
g.g.: Não tenho a certeza de ter apanhado o comboio, Mr. Gould.
G.G.: Bem por exemplo, deixe-me sugerir que a motivação mais forte para a invenção do expectorante tenha sido uma garganta dorida. Claro que depois de inventado o expectorante poderíamos especular o quanto a invenção representaria o futuro e a garganta dorida o passado, mas duvido que nos sentíssemos inclinados a pensar nesses termos enquanto a infecção e a dor estivessem presentes. Não será preciso dizer que a minha inflamação da traqueia em Salzburgo, uma medicação desse tipo ...
g.g.: Desculpe-me Mr. Gould, estou certo que será louvado pelas suas desventuras em Salzburgo mas preciso de ir um pouco além neste ponto. Devo entender então que a sua retirada dos palcos de concerto e subsequente envolvimento com os media foi motivado pelo equivalente musical de uma garganta dorida?
G.G.: Acha isso errado?
g.g.: Bem para ser totalmente franco, acho isso absolutamente narcisista. E para mim é também completamente oposto à sua declaração de que objecções morais estiveram na base da sua decisão.
G.G.: Bem não vejo qualquer contradição - excepto se na sua opinião o desconforto deva ser visto com uma virtude positiva.
g.g: As minhas opiniões não são o objecto desta entrevista Mr. Gould mas para responder à sua questão, o desconforto em si não é o problema. Acredito simplesmente que um artista que mereça esse epíteto deve estar preparado para sacrificar o seu conforto pessoal.
G.G.: Com que fim?
g.g.: No interesse da preservação das grandes tradições da experiência musical e teatral, de manter a nobre responsabilidade do artista em relação à sua audiência.
G.G.: E não lhe parece que uma sensação de desconforto, de não à vontade seria a melhor conselheira tanto para o artista como para a audiência ?
g.g.: Não apenas sinto que o Sr., Mr Gould ou nunca se permitiu saborear ...
G.G.: A gratificação do ego ?
g.g.: Ia dizer o privilégio de comunicar com uma audiência ...
G.G: Numa base de poder ?
g.g.: de um proscênio no qual a sua humanidade está completamente visível, não editada e não adornada.
G.G.: Podia pelo menos ter a vantagem do fraque, talvez?
g.g.: Mr. Gould, penso que não deveríamos deixar que este diálogo degenerasse numa simples brincadeira ociosa. É óbvio que nunca saboreou a alegria de uma relação um-para-um com um ouvinte.
G.G.: Sempre pensei que, do ponto de vista de gestão, uma relação de dois mil e oitecentos para um era o ideal numa sala de concertos.
g.g.: Não quero discutir estatísticas consigo. Tentei colocar candidamente a questão e ...
G.G: então pronto. Tentarei responder com igual candura. Parece-me que se vamos ser alvo de uma guerra de números então vou ter que argumentar pela relação de zero-para-um entre audiência e artista e é aí que a objecção moral entra.
g.g: Receio que não tenha entendido, Mr. Gould. Importa-se de explicar de novo?
G.G.: Penso simplesmente que ao artista deve ser concedido tanto para o seu bem como para o do seu público (deixe-me que lhe diga desde já que não estou nada satisfeito com palavras como público e artista: Não estou de acordo com a hierarquia subjacente a essa terminologia) que lhe deveria ser dado o direito ao anonimato. deveria poder operar em segredo como se não estivesse relacionado ou melhor como se não estivesse consciente das necessidades presumidas do mercado necessidades essas que dada suficiente indiferença por um suficiente número de artistas simplesmente desapareceriam. E tendo desaparecido o artista abandonaria então o seu falso sentido de responsabilidade pública e o seu público prescindiria do seu papel de servil dependência.
g.g.: E atrevo-me a dizer para nunca mais se encontrarem!
G.G.: Não, encontrar-se-ão mas num nível diferente, com muito mais significado do que seria possível num palco.
Fim da primeira parte.
Podem ler a segunda parte aqui .