Esta é a quarta parte de um artigo que Glenn Gould escreveu para a revista High Fidelity em 1974. A entrevista que traduzo aqui a partir da versão original que podem encontrar aqui é do próprio Gould que desempenha o papel de entrevistado e entrevistador. A entrevista claro é também sobre o próprio Gould.
As três primeiras partes deste artigo estão aqui (primeira parte), aqui (segunda parte) e aqui (terceira parte).
Glenn Gould entrevista Glenn Gould sobre Glenn Gould
High Fidelity, Fevereiro 1974.
(Quarta Parte)
Glenn Gould entrevista Glenn Gould sobre Glenn Gould
High Fidelity, Fevereiro 1974.
(Quarta Parte)
g.g.: E tem noção que está a definir e a defender um tipo de censura que contradiz toda a tradição pós-renascentista do pensamento Ocidental ?
G.G.: Claro. É a tradição pós-renascentista que está a levar o mundo Ocidental à beira da destruição. Sabe este gosto particularmente esquisito da liberdade de movimento, liberdade de expressão e por aí adiante é um fenómeno puramente Ocidental. Faz parte da noção Ocidental que é possível separar a palavra e a acção.
g.g. : O sindroma paus-e-pedras ?
G.G.: Precisamente. Existem provas que - a propósito McLuhan fala disto na Galáxia Guttenberg - que povos pré-literados ou minimamente literados estão muito menos dispostos a fazer essa distinção.
g.g.: Suponho que também existe a noção bíblica que desejar o mal é realizar o mal.
G.G.: Exactamente. Apenas as culturas que, por acidente ou boa gestão, ultrapassaram a Renascença é que vêm na arte a ameaça que ela verdadeiramente representa.
g.g.: Posso assumir que a União das Républicas Socialistas Soviéticas está dentro desses critérios?
Não esquecer que este artigo é de 1974 e que estávamos nesta altura em plena Guerra Fria.
G.G.: Absolutamente. Os Soviéticos são um pouco rudes no que diz respeito ao método, admito-o, mas as suas preocupações são absolutamente justificadas.
g.g.: E então as suas próprias preocupações? Será que alguma das suas actividades violou essas restrições e nos seus próprios termos "ameçou" a sociedade ?
G.G.: Sim.
g.g.: Quer falar sobre isso ?
G.G.: Não especialmente.
g.g. : Nem mesmo por um instante? Por exemplo o que diz de ter fornecido música para o Slaughterhouse Five ?
Filme de ficção cientifica de 1972. Glenn Gould tocou para esse filme várias peças de Bach (Variações Goldberg nº 18 e 25 -- BWV 988, Concerto de Brandenburg nº 4 - 3º andamento BWV 1049, Concerto No 3 para cravo 1º andamento BWV 1054 , Concerto nº 5 para Cravo 5º andamento BWV 1056)
G.G.: E então?
g.g.: Bem pelo menos pelos standards soviéticos o filme de Mr. Vonnegut's é provavelmente uma peça socialmente destrutiva, não acha?
G.G.: Tenho receio que tenha razão. Lembro-me mesmo de uma jovem senhora em Leninegrado uma vez me dizer "Dostoyevsky - apesar de ser um grande escritor era infelizmente pessimista".
g.g.: E pessimismo combinado com a valorização do prazer puro é a marca de Slaughterhouse certo?
G.G.: Sim mas eram as propriedades hedonisticas mais do que as pessimistas que me deram muitas noites sem sono.
g.g.: Então não aprovou o filme?
G.G.: Admirei o seu saber-fazer extravagante.
g.g.: Não é a mesma coisa que gostar.
G.G.: Não , não é.
g.g.: posso então assumir que mesmo um idealista tem o seu preço?
G.G.: Prefiro dizer que mesmo um idealista por perceber mal as intenções de um script de cinema.
g.g.: Teria preferido então um Billy Pilgrim sem compromissos ?
Billy Pilgrim é o personagem principal de Slaughterhouse
G.G.: Sim teria preferido algumas características redentoras na sua personagem.
g.g.: Então não concorda com a teoria arte-como-pura-técnica de Stravinsky por exemplo?
G.G.; Claro que não . Essa é provavelmente literalmente a ultima coisa que a arte é.
g.g.: E então quanto à teoria arte-como-arquétipo-de-violência ?
G.G.: Não acredito em arquétipos. São simples brinquedos nas mentes que resistem à capacidade de aperfeiçoamento do homem. Para além disso se está á procura de arquétipos de violença então a engenharia genética por exemplo é uma aposta melhor.
g.g: E quanto à arte-como-experiência-transcendente ?
G.G.: Das três que citou é única que merece que se fale dela.
g.g.: Tem então uma teoria sua?
G.G.: Sim, mas não vai gostar dela.
g.g.: Estou preparado.
G.G.: Bem acho que a arte deveria ter a oportunidade para estar fora de fase. Penso que devemos aceitar que a arte não é inevitavelmente benigna, que a arte é potencialmente destrutiva. Deveríamos analisar as áreas onde tende a fazer menos mal, usá-las como guia e incorporar na arte um componente que lhe permita evitar a sua própria obsolescência.
g.g: Hmm.
G.G.: Porque, sabe, a posição - ou posições - presente da arte, algumas das quais enumerou têm alguma analogia com o movimento "destruam a bomba" de venerada memória.
g.g: Certamente não se opõe a movimentos desse tipo?
G.G.: Não, mas dado que não vi nenhum movimento "abaixo a criança que tira as asas a uma libelinha" também não me posso juntar ao movimento "abaixo a bomba". Está a ver? O mundo Ocidental está cheio de noções de qualificação. A ameaça de uma destruição nuclear enche essa qualificação. A perda de uma libelinha não. Enquanto estes dois fenómenos não forem reconhecidos como um único indivisível enquanto a agressão física e verbal forem apenas vistas como uma faceta da competição enquanto cada decisão não possa ser equacionada para a sua correlação moral, continuarei a ouvir a Filarmónica de Berlim por detrás de uma divisória em vidro.
g.g.: então não espera ver o seu desejo de morte para a arte cumprido durante a sua vida?
G.G.:Não, não poderia viver sem a Quinta Sinfonia de Sibelius.
Fim da Quarta Parte.