sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Glenn Gould (1932-1982) - O Escritor (Parte VI)

Esta é a sexta parte de um artigo que Glenn Gould escreveu para a revista High Fidelity em 1974. A entrevista que traduzo aqui a partir da versão original que podem encontrar aqui é do próprio Gould que desempenha o papel de entrevistado e entrevistador. A entrevista claro é também sobre o próprio Gould.

As cinco primeiras partes deste artigo estão aqui (primeira parte), aqui (segunda parte), aqui (terceira parte), aqui (quarta parte) e aqui (quinta parte)


Glenn Gould entrevista Glenn Gould sobre Glenn Gould High Fidelity, Fevereiro 1974.(Quinta Parte). g.g é Glenn Gould entrevistador, G.G. é glenn Gould pianista/compositor

g.g: Mr. Gould existe uma certa consistência no que disse mas parece-me que percorremos um longo caminho desde o concerto-vs-gravação com o qual começamos.

G.G.: Pelo contrário penso que andamos a fazer uma série de variações sobre esse tema e na verdade demos a volta ao circulo.

g.g.: Em todo o caso tenho apenas mais umas quantas perguntas para lhe colocar de que, provavelmente a mais pertinente agora é: Sem ser um membro frustrado da censura existe alguma outra carreira que lhe interesse?

G.G.: Pensei muitas vezes que gostaria de ser um prisioneiro.

g.g.: E acha que isso é uma carreira ?

G.G.: Oh certamente. Claro que no pressuposto que seria totalmente inocente de todas as acusações.

g.g.: Alguma vez lhe sugeriram que poderia sofrer do complexo de Myshkin?

G.G: Não e não posso aceitar o elogio. Simplesmente como disse nunca percebi a preocupação pela liberdade tal como é conceptualizada pelo mundo ocidental. Tanto quanto posso entender a liberdade de movimento tem apenas a ver com mobilidade e a liberdade de expressão está relacionada com a agressão verbal socialmente sancionada. Assim ser preso seria o teste perfeito da nossa mobilidade interior e da força que nos permitiria saír criativamente da situação humana.

g.g.: Mr. Gould embora esteja cansado noto aí uma contradição em termos.

G.G.: Não penso que realmente o seja. Penso também que existe uma geração mais nova que a nossa - tem a minha idade não tem?

g.g.: Assumiria que sim.

G.G.: Uma geração mais nova que não tem que lutar com esse conceito, para quem o factor competitivo não é uma componente inevitável da vida e que programam a sua vida sem tomarem isso em consideração.

g.g.: Está a tentar vender-me o neo-tribalismo ?

G.G: Não, na realidade não. Suspeito que as tribios competitivas foram as que nos puseram primeiro nesta barafunda mas como eu disse não mereço a designação de complexo de Myshkin.

g.g.: Bem a sua modéstia é lendária Mr. Gould mas o que o fez chegar a essa conclusão?

G.G.: O facto de que faria inevitavelmente pedidos aos meus captores - pedidos que um espirito verdadeiramente livre poderia evitar fazer.

g.g.: Tais como ?

G.G.: A cela teria de ser pintada em cinzento-marinha

g.g.: Acho que isso não seria um problema.

G.G.: Bem ouvi dizer que a reforma da lei penal envolve pintar as celas em cores primárias.

g.g.: Ah estou a ver.

G.G.: E claro teria de existir algum tipo de acordo relativo ao ar condicionado. Ventilação superior estaria fora de questão - tenho propensão para inflamações na traqueia - e claro assumindo que algum tipo de ventilação forçada fosse utilizada o regulador de humidade teria --

g.g.: Mr. Gould peço perdão pela interrupção mas acabou de me ocorrer que dado que nos disse já várias vezes hoje que sofreu uma experiência traumática no Salzburg Festspielhaus --

G.G.: Oh ! Não pretendia ter dado a impressão de uma experiência traumática bem pelo contrário. A minha infecção foi tão grave que consegui cancelar um mês inteiro de concertos retirar-me para os Alpes e viver a mais idílica e isolada experiência de vida.

g.g: Estou a ver. Posso agora fazer uma sugestão?

G.G.: Claro !

g.g.: Como sabe o velho Festspielhaus foi originalmente uma academia de equitação.

G.G.: Certo. Tinha esquecido isso.

g.g: E claro a parte de trás do edíficio está encostada a uma montanha.

G.G: Sim isso é verdade.

g.g.: E dado que é obviamente um homem viciado em simbolos - estou certo que essa sua fantasia do prisioneiro - pareceria-me que o Festspielhaus - a Felsenreitschule - com a sua ambiência Kafkiana montada na base de um penhasco com a memória da mobilidade equestre assombrando o seu passado e localizada ainda por cima na cidade onde nasceu o compositor cujos trabalhos tem tão frequentemente criticado, e dessa forma compromentendo o sua própria opinião sobre julgamentos estéticos --

G.G.: Ah mas eu critiquei-os sobretudo como provas de uma vida hedonistica.

g.g.: Como queira. O Festspielhaus, Mr. Gould é o local onde um homem com as suas ideias, um homem à procura do martirio deveria voltar.

G.G.: Martírio ? O que lhe deu esa impressão ? Não poderia de forma nenhuma voltar !

g.g: Por favro Mr. Gould tente perceber. Não poderia haver uma forma mais significativa de purificar a carne, de fazer ascender o espírito e certamente nenhuma forma com mais significado metafórico de exprimir o seu estilo de vida hermético, através do qual definir a sua procura pelo martirio autobiograficamente, tal como estou certo que um dia virá a fazer.

G.G: Tem de acreditar no que lhe digo. Não tenho tal demanda na mente.

g.g.: Sim tenho a certeza que deverá voltar Mr. Gould. Deverá mais uma vez pisar o palco do Festspielhaus, deverá voluntariamente, com felicidade mesmo submeter-se aos ventos gélidos que atravessam o palco porque só então e apenas então terá atingido o martirio que tão obviamente deseja.

G.G: Por favor não me interprete mal; estou sensibilizado pela sua preocupação. É apenas que nas palavras imortais de Mr. Vonnegut's Billy Pilgrim : "Ainda não estou pronto.

g.g. Nesse caso nas também imortais palavras do mesmo Mr. Vonnegut : "então aqui vai."

1 comentário:

  1. obrigado pelo post... gosto mt do gould, claro e é bom ler este 'diálogo'...

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