Há determinados eventos na vida - verdadeiros acasos - que quase parecem mensagens do destino. Ontem ao ver a lista das 100 Obras por várias vezes olhei para a linha que dizia: Mahler - Das Liede von der Erde e pensei que dificilmente conseguiria uma obra mais adequada para este período Pascoal.
Hoje recebi da Filarmónica de Berlim o anuncio que uma versão desta obra adaptada para Orquestra de Câmara, mais intimista estava disponível no arquivo e podia ser ouvida pelo valor já acostumado de €10. A Orquestra é a da Academia da Filarmónica de Berlim criada por Karajan e que permite a jovens profissionais aprenderem e tocarem sobre a direcção dos melhores, neste caso a direcção é de Simon Rattle. Os solistas são Magdalena Kozena (Mezzo-Soprano) e Andrew Staples (Tenor).
Claro que assim era impossível resistir à tentação de ouvir esta interpretação e também de vos falar desta obra magnifica. Posso dizer-vos que enquanto escrevo estas poucas linhas estou precisamente a ouvir essa versão - um arranjo de Glenn Cortese.
A obra está dividida em 6 andamentos ou canções. Na verdade esta obra inaugura um novo estilo a fusão entre o ciclo de canções e a Sinfonia. Cronologicamente esta seria a nona Sinfonia de Mahler porém Mahler com receio da "maldição da nona" prefere não a numerar dessa forma tanto mais que do ponto de vista pessoal esta obra segue um período particularmente nefasto na vida do compositor que tinha acabado de perder uma filha e tido conhecimento de uma condição cardíaca congénita.
Nesse ano de 1907 Mahler lê o livro "A Flauta Chinesa" uma recolha de poesia chinesa traduzida para alemão por Hans Bethge e considera ter encontrado nessa obra o eco da sua mortalidade e do seu desajustamento com o universo, como se não pertencesse nem à Austria, nem à Alemanha, como se não fosse nem cristão nem judeu, nem maestro nem compositor, sempre rejeitado por todos os campos por não ser nem de um nem dos outros.
Mahler considerava esta obra como a mais pessoal de todas as que já tinha escrito até então. Tinha fortes dúvidas quanto à sua execução em público dado que a considerava talvez demasiado depressiva (o que para os padrões de Mahler era um feito). O compositor confessou estas dúvidas ao seu amigo Bruno Walter tendo nomeadamente perguntado-lhe como dirigiria o dificílimo ultimo andamento, dizendo em tom de anedota: "Tens de me dizer porque eu não sei ..." Na verdade a obra nunca foi interpretada em vida de Mahler tendo sido precisamente estreada por Bruno Walter em Munique em 1911. Aliás Bruno Walter está fortemente ligado a esta obra (para além da relação de amizade que tinha com o compositor) dado que também dirigiu a primeira gravação da mesma de 1936 com a Filarmónica de Viena numa Áustria prestes a ser engolida pelo Anchluss (gravação efectuada por altura da comemoração do 25º aniversário do falecimento do compositor). Penso que dizer "pessoal" era dizer pouco ...
As interpretações que utilizamos para ilustrar esta pungente obra não são da gravação de 1936 mas também são igualmente históricas não só porque mantêm a direcção de Bruno Walter mas também porque se tratam de gravações de 1952 também com a Filarmónica de Viena e com Kathleen Ferrier na altura fatalmente doente e que por essa razão empresta a toda a obra em especial ao ultimo andamento uma característica pessoal tão própria da obra.
O Primeiro Andamento - Das Trinklied vom Jammer der Erde - (A canção para beber à miséria da Terra). O poema é de Li Bai um poeta da dinastia Tang (que é alias o autor dos poemas de três outros andamentos) como veremos. Uma canção sobre a eliminação das dúvidas e do medo pelo alcool, nem que seja de forma temporária, facto claramente marcado pela consecutiva volta ao refrão: Negra é a Vida, é morte
O Segundo Andamento - Der Einsame in Herbst - (O solitário no Outono) é baseado no poema de Tchang-Tsi falando-nos na constante degradação da condição humana durante a vida.
[...]
O meu coração está cansado
e chegado a este belo local de descanso
Pois necessito repouso: Choro muito na minha solidão
O Outono dura há tempo demais no meu coração
Filho do amor, Nunca brilharás e secarás as minhas lágrimas amargas?
[...]
Das Liede von der Erde (Segundo Movimento) - Bruno Walter, Kathleen Ferrier (1952)
O Terceiro Andamento Von der Jugend ("da Juventude") é claramente falsamente chinês (ou seja pretende imitar a forma da música chinesa mas fá-lo voluntariamente num esquema ocidentalizado. Do poeta Li-Tai-Po quase que podemos imaginar a China ocidentalizada ...
Das Liede von der Erde (Terceiro Movimento) - Bruno Walter - Patzak (1952)
O quarto andamento Von der Schönheit ("da Beleza)
Das Liede von der Erde (Quarto Movimento) - Bruno Walter - Kathleen Ferrier (1952)
O quinto andamento Der Trukene im Frühling ("O bebado na Primavera)
Das Liede von der Erde (Quinto Movimento) - Bruno Walter - Patzak
O ultimo andamento Der Abschied (A despedida) dos poetas Mong-Koo-Yen and Wang-Wei é o mais longo dos seis e tem uma duração de 30 minutos aproximadamente (quase metade da obra). Na verdade este poema é uma longa despedida terminando com um diminuendo que se volatilisa na atmosfera com o solista repetindo "para sempre", "para sempre", "para sempre" ...
[...]
Não mais procurarei o horizonte longínquo
Meu coração está parado e aguarda a sua hora,
A bela Terra renasce e renova-se.
Em todos os lugares e para sempre o azul acende o horizonte
Para sempre, para sempre, para sempre, para sempre ...
[...]
Das Lied von der Erde (Sexto Movimento) - Bruno Walter, Kathleen Ferrier (1952) Primeira Parte
Das Lied von der Erde (Sexto Movimento) - Bruno Walter, Kathleen Ferrier (1952) Segunda Parte
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