domingo, 20 de janeiro de 2013

Pesquisa da semana (#03 - 2013) - O aplauso entre andamentos

Esta semana escolhemos uma pesquisa diferente sobre um assunto que de certa forma já foi abordado neste blog mas sem a profundidade que o tema pode eventualmente exigir. Obviamente não nos vamos restringir à questão do aplauso entre andamentos um pormenor quando enquadrado na questão mais geral do comportamento do público em concertos de música clássica especialmente quando confrontado com o que acontece em outros tipos de música. Uma grande parte do que vos vou dizer é largamente inspirado do livro "Listen to This" de Alex Ross, livro que aliás recomendo fortemente, como também o blog do mesmo autor The Rest is Noise e que os leitores mais frequentes deste blog sabem que cito frequentemente.

Como dizia a minha resposta a esta questão vai transcender largamente o detalhe do aplauso embora o iremos considerar também não vamos fugir à questão, aliás para ser preciso vamos começar exactamente por esse ponto. Como poderão ter lido em alguns posts deste blog até ao inicio do século XX era normal existirem aplausos entre andamentos. Aliás não só era normal como era considerado sinal que a obra tinha agradado. Mais ainda eram solicitados "encores" dos mesmos a que por vezes os maestros (muitas vezes os próprios compositores) acediam, radiantes. Aliás mesmo durante os andamentos por vezes isso acontecia quando uma melodia em particular agradava. É celebre a frase da carta de Mozart ao pai dizendo que o tinha feito de propósito numa das suas obras. Não estaria ele preocupado com a "integridade" da obra?

Antes de tentar responder à questão anterior deixem-me explicar quando e porquê o protocolo e as regras mudaram. Podemos dizer que tudo começou quando no inicio do século XIX se começou a considerar música "antiga" como algo que se deveria ter em consideração. Até aí o que se ouvia e tocava era a música da época tudo o resto sendo considerado "antiquado" e logo sem interesse. Obviamente uma música que é de outras eras, um clássico  considerada digna de ser interpretada por ser intemporal tem de ser ouvida com "respeito" e isso foi um primeiro passo no sentido de tornar as salas de concertos de música clássica autênticos templos onde se ouve com veneração a voz dos mestres do passado.

Depois houve Wagner e o seu festival de Bayreuth. É curioso como um único festival e um único compositor  poderá ter tido tanta influência numa mudança comportamental que acabou por exacerbar a postura relativamente à música clássica ao ponto de a tornar peça de museu com os problemas daí adjacentes, mas já lá vamos. O que fez Wagner então? Bem Wagner limitou-se a pedir que não houvessem chamadas aos interpretes para aplausos após o final dos actos por forma a preservar a "atmosfera sagrada da sua obra". O público interpretou isto como uma proibição total de aplauso e começou a reprimir com excesso de zelo toda e qualquer manifestação de agrado por parte do público. Estávamos nesta altura no final do século XIX (Bayreuth começou em 1876).

De certa forma esta tendência de se tomar demasiado "a sério" de colocar a obra de arte num pedestal catalisou a já existente tendência de sacralização das obras do passado que como disse "têm de ser ouvidas com respeito". Mais ainda não só isso mas como também os próprios compositores passaram a escrever obras que pressupõem esse tipo de comportamento (ao invés do nosso Mozart que escrevia também para o prazer do público actual) mas não só, começaram a escrever e a compor pressupondo um público restrito capaz de compreender uma linguagem tão sofisticada que quase é compreensível pelos seus pares. Claramente este nosso blog tenta modestamente "remar" contra esta maré encontrando o justo equilíbrio.

Já agora curiosamente e como nota de rodapé na Opera ainda são "permitidos" aplausos não só entre andamentos (ou actos de preferirmos) mas inclusivamente no fim de árias particularmente bem interpretadas, um resquício doutros tempos. Digo que é curioso porque foi na ópera que como vimos os comportamentos mais "rígidos" se iniciaram. Mas não só na ópera já que como salienta Alex Ross no seu livro também nos Estados Unidos no inicio do século XX se pode encontrar em Stokowski a prática do silêncio entre andamentos para os Estados Unidos.

O que é importante compreendermos é que esta prática do silêncio e dos aplausos não era comum para compositores até quase ao fim do romantismo e o esperado era exactamente o contrário. É importante compreender não forçosamente para mudar a prática corrente mas para não assumirmos erradamente que é a única forma de comportamento possível. Em minha opinião possivelmente a prática corrente acaba por resultar em maior dano para a música do que o aplauso em si. Vamos ser honestos. As composições até ao final do romantismo estão concebidas para ser aplaudidas no final dos respectivos andamentos. Mais ainda até ao final do período clássico e mesmo em boa parte do romantismo a "unidade" das obras era algo que não existia ponto final paragrafo. Muitas vezes as obras resultavam de bocados compostos para outras ocasiões e isso não preocupava nem as audiências nem os compositores.

Acho que é mais do que tempo de pensarmos se esta excessiva sacralização da música clássica não acaba por a tornar uma coisa que não é compatível com a música: uma forma de nos proporcionar emoção. Não vou ao ponto de sugerir que se volte ao tempo de Mozart com aplausos no meio das peças mas entre andamentos meus amigos eu sei que não devo mas muitas vezes que me apetece, apetece. E que deveríamos poder gritar bravo e pedir "da capo" também. Sabem o que mudou? É que não sentimos essa necessidade. Não se esqueçam que no tempo de Beethoven ou de Mozart a música ao vivo era a única forma de a ouvir. Agora temos gravações, mas isso é tópico para outro post mas pensem bem no que isso alterou. Imaginem por um momento que a única forma de ouvirem música fosse ao vivo e que influência isso teria na importância desse momento, no número de vezes que ouviriam determinada obra e no que isso significaria para a forma de arte e os seus interpretes.

Para manter uma promessa e fazer o contraponto (ou não) ao que acabei de dizer estou a escrever isto ao som da Heróica de Beethoven (aliás recomendado por Alex Ross) agora no fim do segundo andamento e digo-vos o seguinte. Aplausos aqui? Talvez mas apenas após uns largos segundos de silêncio ...




6 comentários:

  1. Excelente texto, Fernando.

    O silêncio prolongado também é uma forma de aplauso !

    Concordo em geral consigo, à excepção de um detalhe: a música sacra. Por mais entusiasmo que suscite um Requiem ou uma Missa Solene, uma Cantata ou um Stabat Mater, não me parece apropriado irromper em aplausos no meio da obra.

    De resto, num concerto instrumental, onde se procura suscitar emoções no ouvinte com a mestria técnica, é justo que quem ouve tenha vontade de reagir, muitas vezes até de cantar ou marcar o ritmo... o problema está na justa medida, coisa que hoje em dia não existe, "vale tudo". Se uma plateia educada reage com aplauso imediato a uma interpretação brihante, porque não pode "qualquer um" desatar aos 'bravos' a desprpósito? ou sapatear o ritmo do Bolero? ou cantarolar "l'amour est un oiseau rebelle" sobre a voz da soprano?

    Em parte, é a democratização do acesso à música, o alargamento a públicos mais vastos, que obriga à disciplina.

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  2. Claro Mário obviamente há limites e o caso que aponta é especial por precisamente ser "mesmo" música sacra. Sublinho o mesmo com aspas porque na verdade essa música tem uma função que a transcende e logo o respeito devido deve-se mais a esse facto do que a música em si embora mesmo fora desse contexto se possa argumentar que o seu valor permanece ...
    Porém no resto obviamente o acesso à arte democratizou-se e torna-se difícil senão impossível ouvir música ao vivo se não existirem regras mínimas. Porém devemos considerar se essa protecção não acaba por matar o que supõe proteger, precisamente pela sua sacralização.
    Não sei ... sinceramente não sei.

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  3. Suponho que em concertos restritos, em pequenas salas mais ou menos intimistas, se poderá exercer melhor o direito ao livre aplauso :)

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  4. Fernando, também achei o seu texto excelente, parabéns.

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  5. Totalmente... ou melhor quase totalmente de acordo com o post do Fernando. Só que abordou unicamente os "APLAUSOS"... e quando se não gosta?!... É ou não legítimo o "PATEAR"?... Julgo e tenho a certeza que não seria INÉDITO. Quanto à música sacra?! Na minha opinião... tudo depende da religião que se professa e do que se entende por essa designação, que em meu entender não se pode confinar aos "ritos" litúrgicos da religião católica apostólica romana... tenha-se em consideração o "godspeel"! Ou será que toda a "MÚSICA SAGRADA" tem que ter o mesmo figurino?!!!

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  6. Meu caro Anónimo tem toda a razão quer quanto ao patear quer quanto à música sacra. Admito o meu "bias" cultural relativamente à segunda e não obviamente que não tem tudo de seguir esse figurino, o respeito está na alma e na genuinidade com que pratica não no ritual e quanto ao patear o meu respeito pelos músicos, por quem se atreve a tocar em público é tal que dificilmente assobiaria. Já me aconteceu não aplaudir mas ter mesmo vontade de mostrar desagrado confesso que não e já ouvi coisas mesmo más :-) :-). Bias de coração mole neste primeiro caso.

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